Nunca repeti aqueles tempos, nunca a eles cheguei, nem que por outros caminhos, com outras pessoas, nunca me vi devolvido à sensação irreprimível de que dois corpos podem encaixar perfeitamente um no outro, de que estar calado é só outra maneira de estar a conversar.
Apaga-se a lâmpada das escadas, fica só um luar vindo de um sítio qualquer, a luz que se escapa por baixo das portas, uma gargalhada mais forte da festa, a madeira que estala acima de nós, por baixo de nós. Ficamos em silêncio, à espera de não ser descobertos. Ou talvez já nem isso importe. Cheira à madeira velha, ao calor, a resto de naftalina e veneno para ratos, à plantas da velhota, a pele, suor, baunilha. O braço estendido, os dedos trepando pelo corrimão, o corpo descendo sobre mim, enterrando-me em si com lentidão de torturadora. Saboreio-a inebriado, saboreia-me como se lambe uma colher no fim de uma sobremesa. Uma gota de suor escorre-me de lado na cara, pelas costas, na parte de trás das pernas.
Vão achar-me doido, mas sempre gostei de contemplar tectos. Num tecto podemos descobrir imensas coisas sobre um lugar. Os tártaros diziam que a Via Láctea era a costura na tenda que é o céu, as estrelas buraquinhos por onde escapa a luz. Mas dessa tenda vem frio e chuva e neve e coisas variadas contra as quais achámos que nos devíamos proteger. E eu compreendo. Como pode alguém que decidiu dedicar a sua vida a salvar as de outros não compreender?
O meu primeiro choque com a cidade foi cheio de sentimentos contraditórios. Trazia a felicidade de ter conhecido alguém, aquela primeira mescla de desconfiança, medo, excitação misturada já com saudade, o receio do desconhecido. Colei esses sentimentos às ruas, às árvores, às praças, aos edifícios, às pessoas. E tu... vieste visitar-me. Tudo se encaixou.
Há dias em que a tristeza nem sequer se dá ao trabalho de se esconder nas cavernas da memória, do arrependimento. Fica ali à superfície, a picar-me, a contagiar tudo o que penso ou faço. É desse lugar da tristeza que vem o meu canto, mesmo o canto de amor, de felicidade.
Excertos da minha leitura de metro de Paris, cuidadosamente dobrei o canto das folha,s e agora, prestes a acabar o livro que não quer que acabe com “e viveram felizes para sempre”, porque não se adequava à história, venho aqui transcrevê-los. Regresso a Barcelona de Luís Soares.
2 comentários:
Já está registado :))
Não é um livro fantástico, é um livro de alguém cansado e enganado com a vida e com as escolhas que fez. Às tantas não é o melhor livro de férias. Mas adequava-se ao escuro do metro.
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